Crítica: Sr. Ninguém



Nemo Nobody é um personagem racionalmente possível e  saudavelmente louco. Ele representa uma parte dos devaneios psíquicos, é ilusório e real ao mesmo tempo, assim como temos a certeza da existência de um sonho, e dele não extraímos ao mundo nenhuma prova de sua existência. A peculiaridade das solitárias lutas internas de Nemo são, em leitura básica, o aceite à incapacidade da certeza, que traduzem o limite de cada um em controlar o dia-a-dia, o tempo, as pessoas e a si. Há um fim nessa linha de controle e, em conclusão urgente, ela contribui para a não-existência do caos.

Nemo é irreal, ninguém, como sugere o título, e nem por isso complexo. É uma parte da insanidade de nossa mente e da sua própria quando criança, que representa a criatividade e principalmente a liberdade em imaginar o impossível, fugir das regras que a vida por si só já impõe e também das que adicionamos a ela. Nós somos Nemo, em maior ou menor escala, um espelho de uma saudável liberdade da mente, em qualquer dimensão e fora de todos os padrões.

Sr. Ninguém (Mr. Nobody, 2009) convence a nós em deixá-lo fluir, seja quais forem suas intenções. Por mais que as imagens resumam muito mais incompreensão do que entendimento, sabe-se que nada dali é absurdamente inalcançável a ponto de se considerar inoportuno. A sua não-linearidade é de extremo controle técnico, e na montagem aclamamos a maior competência do filme.

A centralização do tempo e da possibilidade de controlá-lo é o tema chave da narrativa. A mortalidade do personagem é além de uma construção do roteiro, a analogia com aquilo que de mais filosófico se compreende no filme; a morte e o fim da incompreensão, da dúvida e do não-explicável são a morte da vida, das escolhas, dos medos e das experiências que vivemos em cada etapa de nossa existência.

Talvez aí concentre-se, um tanto mascaradamente, a forma mais metafórica de contrapor a relação entre homem versus existência.



Talvez se auto-explicando, o filme opta por nos tirar a possibilidade de controlá-lo. Saltando no tempo e nas experiências da vida de Nobody, só podemos tomar conclusão após experimentar outras etapas de sua história, algo como o impossível entendimento imediato aos fatos mais banais da nossa vida e de Nemo, das quais se responde com cara de riso e interrogação como se a vida tivesse se descarrilhado e nós ainda permanecêssemos na linha do trem.

Ao que somos apresentados da vida de Nemo, então, nos cabe a cumplicidade dos fatos marcantes de sua vida, a infância com a impossível escolha entre um pai e uma mãe, as amizades que aos poucos coloriam os olhos que até então só enxergavam em preto-e-branco, o casamento como decisão de tempo infinita, os filhos e as duras batalhas da vida. Nemo é um poço de insegurança, que se condena a sofrer sem remediação se suas escolhas tomarem o caminho do sofrimento. Destes fatos claros que Sr. Ninguém dramatiza, constitui-se a analogia a ação do tempo na vida do personagem, e mesmo que tenhamos em senso comum que a volta no tempo é uma atitude improvável, não há incômodo em acompanhar a luta de Nemo para reverter esta regra.

Diante da abordagem de não existência de Nemo em sua própria certeza abre espaço à interpretação por um mundo paralelo. A idade de Sr. Nobody, em sua apresentação, é de 118 anos. Por viver num futuro não muito distante e principalmente ser o último homem mortal, ele se torna uma atração sensacionalista e é acompanhado em seus últimos momentos de vida.

Nemo é o único homem capaz de sofrer por escolhas, de não ter chance de voltar atrás e de não poder controlar seu tempo. Sr. Ninguém é fácil em referências, mas não parece querer perverter qualquer obra anterior. É, sim, uma concentração de temas conceituais, que em outros filmes apresentavam-se em ideia única. Em De Volta Para o Futuro ele exclama a viagem no tempo; em O Curioso Caso de Benjamin Button agrega a possibilidade de reverter a ordem da vida, nascendo velho e com experiências e morrendo jovem; em Matrix a possibilidade de um mundo paralelo, da chance de ver a si e ao mesmo tempo não existir; e de O Show de Truman a tradução de uma vida como espetáculo.



Às vezes muito dramático, outros momentos pura ficção científica ou até unicamente um romance, há poderosas forças em meio à essa experiência confusa e prazerosa que pode ser assistir Sr. Ninguém. Em meio às suas ideias borbulhantes e ao leque de possibilidades interpretativas que fornece e não se importa em explicar, temos a contradição de cenas rápidas que se montam em habilidade raríssima, das quais nos anseia a vontade urgente de revê-las para tentar perceber onde está o truque, não satisfeitos da condição de enganados. Ainda assim, as investidas em profundidade não pecam pelo medo ao drama, e saltam-se altamente comoventes na história. São os pontos de apego e aproximação que temos com Nemo.

Se de qualidade conceitual o filme não parece vacilar, a diferenciada técnica é o ponto de equilíbrio de tudo. À trilha sonora, que assim como o filme quer fugir do banal, embala e contribui às cenas de forma agregada e complementar, sem tomar lugar como foco narrativo e se apresentar como experiência mais agradável que seu próprio filme.

Sr. Ninguém não é um filme de interesse óbvio. Parte de cada olhar a interpretação do que pode significar; contudo as conclusões, positivas ou negativas, podem parecer nem falar da mesma obra. É grande mas nem por isso tão longo, resume-se de um roteiro bem pensado e não necessariamente genial, mas que facilmente convida-nos a revê-lo, seja pela vontade de entender suas intenções ou repetir sua sensação de conforto; ou, quem sabe, assim como Nemo dar chance à uma nova interpretação daquilo que acabou de experimentar.




 

©Copyright 2010-2013 Cinemarco Críticas