Crítica: O Pagamento Final


O crime carrega em si algumas regras irrevogáveis. Carlito Brigante (Al Pacino) tem consciência dessas regras e o perigo que elas oferecem, mas tenta driblar seu próprio passado para, como só ele sabe, definitivamente trocar de vida. O mafioso carrega em seus ombros a fama de um delinquente, daquele que construiu seu império e burlou a sociedade com a sua inteligência e, principalmente, sua noção do perigo. Carlito está disposto a usufruir de uma vida digna, mas sabe que, após sair da prisão, terá de duelar contra si e seus antigos comparsas para convencer-se de seu novo objetivo. Ele sofrerá a punição do crime pela sua regra máxima, e ele bem sabe qual é.

Carlito parte, assim, para acertar as contas com sua vida criminal, certo de que seus dias de mazela estão contados. Tudo é uma questão de tempo, até ele juntar o dinheiro necessário para fugir para as Bahamas ao lado de Gail (Penelope Ann Miller), com quem manteve uma relação conturbada antes mesmo de ser preso por tráfico de heroína. Gail cumprirá o papel de motivadora nessa sua nova caminhada, o porto-seguro que Carlito almeja como recompensa e caminho de sua maior felicidade.

Depois de apenas cinco anos cumprindo pena prisional por seus atos, seu advogado e maior amigo David Kleinfeld (Sean Penn) convence, em tribunal, que Carlito não precisava cumprir os 30 anos a que fora condenado, estando paga a sua dívida com a sociedade. Carlito sabe e relata: Sua conta foi paga com Deus, sua nova mentalidade é a recompensa de sua conquista e, sua meta, é uma felicidade honesta. Balela, para um juiz cansado dessas histórias com promessas de renovação, ele se vê obrigado a soltar Carlito, mas seu leve sorriso sarcástico nos revela que ele sabe que devolveu às ruas um perigo à sociedade. 

É desse mote que O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993) constrói uma fantástica narrativa para contar a trajetória do porto-riquenho Carlito Brigante. Livre de sua pena, Carlito revê no gueto a condição de astro criminoso, uma referência e um ícone para os demais mafiosos que ali se instalam. Solto, ele briga contra seu passado, recusa sua fama, desvia do perigo; mas sabe que o mundo do crime não guarda amigos, senão o oportunismo e a vitória do melhor estrategista, aquele que sabe com quem e como se envolver.

Construindo essa narrativa de modo primoroso, o diretor Brian de Palma projeta uma longa cena, de perfeita execução. Atento a qualquer tipo de detalhe, desde o enfoque ao olhar pressentido de Carlito e sua experiência, até o sorriso fácil e ingênuo de seu sobrinho, é importante perceber a magnífica técnica e o absoluto domínio sobre todas as informações visuais inseridas em cena, passada ao fundo de uma barbearia, onde o sobrinho de Carlito planeja, inocente, realizar sua primeira “tramoia”. Carlito percebe, desde o sotaque porto-riquenho de um inglês precário à porta entreaberta de um banheiro que esconde muito mais que uma privacidade, o perigo desenhado ao jovem rapaz, e age em prol de sua vida, mesmo que seja tarde demais. Nessa cena que dura praticamente dez minutos, nada é em vão, nem mesmo o momento em que as músicas caricatas de Porto Rico alternam como trilha sonora, nem o porquê de aumentá-la em determinado momento. Aquelas paredes vermelhas e de textura forte remetem, óbvio, ao perigo, e, não por coincidência, nos levam a uma alusão ao sangue. Carlito contra-ataca, e deixa de sobreaviso ao sobrinho morto pela sua própria imaturidade, uma verdade tardia sobre o mundo do crime: Pobre sobrinho, nesse mundo, não há espaço para amizades.



É desse tom genial que todas as cenas, sem exceção, são executadas. Conciliando uma direção absolutamente madura de De Palma, após seus maiores sucessos (Carrie – A Estranha, Scarface e Os Intocáveis), com um roteiro primoroso e bem construído, mesmo que com um enfoque um pouco incomum, O Pagamento Final registra sua importância na seleta lista de filmes de gangsteres, e é agraciado pela direção madura das mãos de um mestre do cinema.

É importante ressaltar a importância dada a cada personagem coadjuvante nessa história. Assim, cada um possui ao menos um grande momento envolto ao personagem de Al Pacino, e contribuem com atuações importantes para o desfecho final, como o par romântico de Carlito, Gail; o seu advogado e melhor amigo, David; além de seu sobrinho e das amizades do mundo suburbano, como antigos comparsas e os novos sócios de seu bar.

Pautado num contexto romântico, a trajetória de Carlito guarda momentos memoráveis acerca de sua vida íntima. A trama narrativa do famoso gângster é narrada com um objetivo claro ao personagem; o que Carlito quer é juntar o dinheiro necessário, com a ajuda de seu bar, e fugir com Gail ao paraíso. É importante e curioso perceber, também, que a opção de De Palma em deixar um imenso spoiler logo no começo de como o filme iria acabar, não desmerece em nada a profundidade e as surpresas dessa história, aliás, chega até a ser engraçado o modo como torcemos por um criminoso, cientes de seu desejo pacífico, e esquecemos que já nos foi contado seu fim. Queremos, mesmo, que aquilo seja uma inverdade, queremos ser traídos pela narrativa, mas ela não pode trair a mensagem deixada por Carlito ao ver seu sobrinho morto naquela cena criminosa.

No que se refere ao fator motivador dessa história, o desejo de fuga com Gail, De Palma consegue, em rara felicidade, construir um romance de imensa qualidade, com apenas cinco ou seis grandes cenas. É de se rever o momento em que Carlito persegue Gail em sua aula de dança, em meio a uma chuva fotografada em tons de azul-escuro e que logo nos remete a Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952), onde o personagem sobe no terraço de um prédio, e cobre-se por uma tampa de lixo para proteger-se da chuva. É de grande apelo sentimental o modo como os dois voltam a se ver, quando Carlito corre atrás de Gail citando seu próprio nome para que ela, surpresa, vire emocionada ansiando pela sua figura. Como ápice desse romantismo, uma cena filmada em uma porta entreaberta da casa de Gail sela a magia dessa relação com uma encantadora cena (ainda com uma clara referência a O Iluminado), ela faz um charme, ele quebra a porta, e contracenam com a música You Are So Beautiful, de Joe Cocker, ao fundo.

Carlito vive, entre emoções, esperanças e a insegurança da incerteza de poder ir as Bahamas com Gail, um turbilhão de momentos cruciais. Ele deve reconquistar Gail, convencê-la de fugir consigo e ainda driblar seu advogado Kleinfeld, que agora está também se inserindo no meio criminoso, ainda que de modo inexperiente, e suplica pela ajuda de Carlito para eliminar um homem que ameaça matá-lo.



Não há tempo para pensar, Carlito deve ser hábil em cada lance, sabe que sua felicidade depende de passar por este arriscado momento. Em meio a noção de que muitos querem matá-lo, Charlie, como Gail carinhosamente o chama, compra as passagens de trem, e segue-se uma grande cena de perseguição entre ele e os chefes de Estado. Longa e com um clímax perfeito, De Palma nos presenteia com um imenso e verdadeiro sorriso de Carlito, correndo sem limites para os braços de Gail, que já o espera na porta do trem. Essa porta é uma metáfora ao paraíso, e ele cessa sua fuga aos pés da felicidade pois, antes de tudo, Carlito já foi um homem da máfia, e sabe que merece pagar, pagar para ter noção que o crime não perdoa sua escolha.

Carlito se vê deitado numa maca, tentando ser salvo da escolha que fizera. Em pensamentos íntimos, recalcula sua vida, sua missão, julga a todos que fizeram parte de sua trajetória, mas sabe que é justo seu destino. Aqueles dizeres “Fuga ao Paraíso” descritos numa placa, ao qual Carlito observa, já guardam Gail e seu filho, parados, esperando finalizar essa jornada que não merece tê-lo como coadjuvante, para mover-se ao dançar de Gail nas Bahamas, já desfrutando dessa vida recompensadora. A vida recolocava em ordem, assim, cada qual com seu destino e seus merecimentos.


Destaque sonoro:





 

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