Crítica: O Cheiro do Ralo


É extensa a lista de filmes que tornam-se grandes sucessos mas, por pouco, quase nem saem do papel. Em meio à obrigação de retorno do investimento de cada obra, a incerteza sobre a realização de um trabalho e sua produção sofrem muitos questionamentos sobre a garantia de cobrir o orçamento dos investidores. Por isso, nem sempre é fácil apostar e investir numa obra a qual o seu público não está bem definido, ou ainda não é significativamente grande.

Star Wars é o maior exemplo da discrepância entre o que se imagina antes de sua realização e o que se concretiza ao término dela. Entre tantos exemplos que se pode oferecer, O Cheiro do Ralo (2006) também encaixa-se neste aspecto. Pautado num roteiro pouco convencional e focado numa comédia de nicho, este trabalho de Heitor Dhalia quase não acontece. Não se surpreende quem vê o filme e sabe que ali foi depositada grande coragem dos produtores, roteiristas e de seu diretor. Seu orçamento baixíssimo coopera para a coragem em acreditar que há público interessado neste tipo de humor.

Como um filme brasileiro, não é surpresa afirmar que o investimento é nada significativo, mas O Cheiro do Ralo consegue ter muito menos investimento. Tanto que a mobília, decoração e objetos utilizados para as filmagens não chegaram a ser comprados, são ítens particulares dos produtores da obra. Não se pode esperar uma beleza visual, filmagens inovadoras e grande trabalho de arte. Não se pode esperar nem grande trabalho de figurino. Tudo é cru, é verdadeiramente original. Quase uma filmagem documental e caseira de uma história que se passa num contexto suburbano.

A aposta se dá no personagem criado para a arriscada e boa interpretação de Selton Mello. É seu persongagem, Lourenço, que comanda todas as cenas do filme. As situações non-sense são extremamente recorrentes, e é nelas que se espera a identificação do espectador. Não há nenhum humor-gratuito, estão marcados na personalidade deste cara que nem sabe o que quer mostrar. Lourenço é um cara comum, mas misterioso. Acompanhamos o cotidiano deste rapaz, que vive de compra e venda de quinquilharias. Ele atende seus clientes na intenção de extraí-los a melhor condição financeira possível. Quer sugá-los. Em geral, estão sempre em necessidades urgentes de dinheiro e é este o trunfo que Lourenço aposta para barganhar seu lucro.

O cheiro do ralo se insere na história como uma apologia à situação destrutiva de cada cliente atendido, ao qual Lourenço também se veria posteriormente. Ele possui um banheiro com problema no ralo, que exala um odor insuportável, mas se vê incapaz de solucionar o problema. Sua vida sem amigos, sem parentes, de desleixo total e sem foco, se perde totalmente quando ele se apaixona por uma bunda. Na concepção de Lourenço, é a perfeição. Com dinheiro no bolso, se dispõe a pagar pra ver a bunda, para tocá-la. Se perde totalmente e consegue fazer de sua vida uma verdadeira merda. Vai para casa, volta ao trabalho, explora seus clientes e vai à lanchonete conversar com a dona da bunda. Não há nada mais que isso, é uma vida rotineira e sem sonho.



Sua condição de favorecimento financeiro e total exploração muda aos poucos. Seu controle e domínio se perdem. Os clientes, ao qual eram grandes motivos de piada, revertem a situação e fazem-no perder o favorecimento e o controle sobre as negociações. Lourenço vive de três motivações: a vontade de rir e ironizar a condição de vida precária de cada cliente, o desejo de comprar uma bunda e a necessidade de inalar o cheiro do ralo de seu banheiro. É neurótico extremado. Possui prazeres controversos, que gozam de comédia quando nos são apresentados. Atender os clientes e negociar com eles passa a ser um grande prazer também ao espectador. Num jogo de interesses, tudo tem o seu valor. Os vícios retratados em cena são uma boa visão da sociedade que se mostra interessada e disposta a tudo. E muito disso se mostra no filme. Há quem venda a roupa e a dignidade por droga, há quem venda uma bunda e há quem queira comprá-la, há quem se vicie no cheiro fedorento de um esgoto.

O filme é um amontoado de situações controversas e politicamente incorretas, analisadas de maneira cômica e demonstrada da forma como a sociedade não considera certa mas mesmo assim a pratica. Dispõe desta comédia non-sense muito bem trabalhada e inspirada mas certamente possui grandes críticas internas intrínsecas aos seus personagens. Neuróticos, viciados e drogrados, pessoas que vivem na periferia do politicamente correto, e que nesta situação demonstram um pouco do que somos. Lourenço é satisfeito e feliz à sua maneira, vive na merda e deposita no cheiro do ralo a sua felicidade.




 

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